Duzentas
gramas
Tenho um amigo que fica indignado quando
peço na padaria “duzentas” gramas de presunto — já que a forma correta, insiste
ele, é duzentos gramas. Sempre discutimos sobre os diferentes modos de falar.
Ele argumenta que as regras de pronúncia e de ortografia, já que
existem,
devem ser obedecidas, e que os mais cultos (como eu, um cara que traduz livros)
devem insistir na forma correta, a fim de esclarecer e encaminhar gente menos
iluminada.
Eu sempre argumento que, quando ele
diz que só existe uma forma correta de falar, está usurpando um termo de outro
ramo, que está tentando aplicar a ética à gramática, como se falar corretamente
implicasse algum grau de correção moral, como se dizer “duzentas” significasse
incorrer numa falha de caráter, e dizer duzentos gramas fosse prova de virtude
e integridade.
Ele vem então com aquela de que se
pode desculpar a moça da padaria quando fala “duzentas”, pois ela desconhece a
norma culta, mas quanto a mim, que a domino, demonstro uma falha de caráter ao
ignorá-la em benefício dos outros — só para evitar o constrangimento de falar
diferente. “Quem sabe fazer o bem e não o faz comete pecado” — parece concluir.
Eu reconheço, sim, que falo de forma
diferente dependendo de quem seja meu interlocutor. Às vezes uso
deliberadamente formas como “tentêmo” ou “vou ir”. Pelo mesmo motivo, todas as
gírias e dialetos locais me interessam. Não que — por exemplo—a decisão de
dizer “duzentas” gramas seja consciente, uma premeditação em favor da inclusão
social. É que, algumas vezes, a coisa certa a se fazer — sobretudo na linguagem
falada — é ignorar a norma, ou pervertê-la. Quando peço “duzentas gramas de
presunto, por favor”, a moça da padaria invariavelmente repete, como que para
extorquir minha profissão de fé à norma inculta:
__
DUZENTAS?
—
Duzentas, confirmo eu, já meio arrependido, mas caindo, ainda assim, em
tentação.
(Adaptado de Pauto Brabo, site A bacia das almas)
1. A
posição do autor do texto em relação aos diferentes níveis de linguagem é a de
quem:
a) por
desconhecer a norma culta, não pode mostrar constrangimento quando não
fala corretamente.
b) por
dominar a norma culta, sente-se à vontade para deturpá-la, sem que haja
qualquer razão para isso.
c) mesmo
dominando a norma culta, não hesita em transgredi-la, quando isso favorece a comunicação
com os outros,
d) por
desconhecer a norma culta, despreza a presunção das pessoas que insistem em
corrigir quem fala incorretamente.
e) mesmo
dominando a norma culta, desobedece-a sistematicamente, não importando a
situação de uso da linguagem.
2. Atente
para as seguintes afirmações:
I. A
indignação do amigo deve-se ao fato de que o autor, que se apresenta como um
homem culto, não domina as regras de pronúncia e de ortografia.
II. Para
o amigo do autor, a desobediência à norma culta é sobremaneira indesculpável
quando quem a infringe é aquele que não a desconhece.
III.0
autor comunga com seu amigo a convicção de que o uso da norma culta beneficia o
interlocutor que ainda não a conhece.
Em relação ao texto, está
correto o que se afirma em:
a)I, II e III b) I e II, somente c) II e III, somente
d) I e III,
somente e) II, somente
3. No
segundo parágrafo, a argumentação do autor diante da convicção do amigo quanto
ao uso da linguagem pode ser assim resumida:
a)
Deve-se desculpar o pecado de quem insiste em falar ou escrever de modo
incorreto.
b) Não
se deve contundir o plano da suposta correção da norma culta como plano
ético das virtudes pessoais.
c) Mesmo
quem desconhece a norma culta está virtualmente habilitado para um dia vir a
dominá-la.
d) Quem
se vale da linguagem espontânea demonstra ser mais virtuoso do que aquele que
se vale da norma culta.
e) O
desconhecimento da norma culta prejudica apenas a comunicação, mas não implica
falta de caráter.
4. De
acordo com o contexto, é irônica a seguinte frase:
a) (...)
caindo, ainda assim, em tentação.
b) (...)
as regras de pronúncia e de ortografia (...) devem ser obedecidas (...)
c) (..j
pois ela desconhece a norma culta (..)
d) (...)
algumas vezes, a coisa certa a se fazer é ignorar a norma
e) (...)
todas as gírias e dialetos locais me interessam.
5.
Considerando-se o contexto, na passagem em que a moça da padaria pergunta
“DUZENTAS?”, repetindo a palavra ouvida:
a) a
atendente demonstra compartilhar a mesma indignação do amigo do autor.
b) o
amigo do autor encontraria uma razão para mudar de idéia quanto às suas
convicções
linguísticas.
c) o
autor demonstra seu constrangimento ao ser imediatamente corrigido por uma
atendente.
d) o
autor faz crer que a pergunta teria sido um pedido de confirmação da forma
verbal por ele
utilizada.
e) a
atendente demonstra sua satisfação em reconhecer o esforço do autor em se valer
de uma linguagem espontânea.
Nenhum comentário:
Postar um comentário