A mão
Primeiro conto publicado por Guy de Maupassant, no
Almanach de Pont-à-Mousson para o ano de 1875.
Guy de Maupassant
Tradução de Mário Quintana, 1943
Há cerca de oito meses, um de meus amigos, Louis
R..., reunira, uma noite, alguns camaradas de estudo. Bebíamos ponche e
fumávamos, conversando sobre literatura, pintura e contando, de tempos em
tempos, algumas cousas cabeludas, como acontece em reuniões de rapazes. De
repente a porta se escancara e um de meus bons amigos de infância entra como um
furacão.
— Adivinhem de onde é que eu venho — exclamou em
seguida.
— Aposto por Mabile — responde um.
— Não, tu estás muito alegre. É que tu acabas de
conseguir dinheiro emprestado, de enterrar o teu tio, ou de empenhar teu
relógio à minha tia — responde um outro.
— Já sei, andaste bebendo por aí — afirma um
terceiro — e como farejaste o ponche de Louis, subiste para
recomeçar.
— Pois ninguém acertou. Venho chegando de P..., na
Normandia, onde fui passar uma semana e de onde trago um grande criminoso amigo
meu, que peço a permissão de lhes apresentar.
Dizendo isto, tirou do bolso uma mão de defunto.
Era horrível, escura, seca, muito longa e como que crispada; os músculos, de
uma força extraordinária, ressaltavam sob a pele apergaminhada; as unhas
amarelas, estreitas, tinham ficado presas nas extremidades dos dedos. Tudo
aquilo cheirava a celerado.
— Imaginem — disse o meu amigo — que venderam no
outro dia os trastes de um velho feiticeiro muito conhecido em toda a região.
Ele ia ao sabá todos os sábados, montado num cabo de vassoura, praticava a
magia branca e negra, azedava o leite das vacas e as fazia carregarem o rabo
como o do companheiro de Santo Antônio. A verdade é que aquele velho alarife
era muito afeiçoado a esta mão, que pertencera, dizia ele, a um célebre
criminoso supliciado em 1736, por haver lançado de cabeça para baixo, num poço,
a sua legítima esposa (cousa que, a meu ver nada tinha de mal) enforcando
depois na torre da igreja o padre que os casara. Após essa dupla façanha, saíra
a correr mundo; e na sua carreira tão curta quão bem preenchida, conseguira
saquear uma dúzia de viajantes, defumar uns vinte monges num convento e
transformar em serralho um monastério de freiras.
— Mas, e que vais fazer desse horror? — exclamamos.
— Ora! Vou botá-lo de aldrava à minha porta, para
assustar aos credores.
— Meu amigo — disse Henry Smith, um inglês alto e
muito calmo — eu creio que essa mão é simplesmente carne conservada por algum
processo novo. Eu te aconselho que faças uma sopa com ela.
— Não brinquem — disse com a maior seriedade um
estudante de medicina, já bastante ébrio; — uma cousa eu te aconselho, Pierre:
manda enterrar cristãmente esse despojo humano, para que o seu proprietário não
venha reclamá-lo. E depois, essa mão decerto já adquiriu maus hábitos, pois,
como diz o provérbio: quem matou, matará.
— E quem bebeu, beberá — retrucou o anfitrião,
servindo ao estudante um grande copo de ponche. O outro o empinou de um só
trago e rolou para baixo da mesa. Esse desenlace foi acolhido por formidáveis
gargalhadas. E Pierre, erguendo o copo, fez um brinde à mão :
— Eu bebo — disse ele — à próxima visita de teu
dono.
Depois falaram de outras cousas e cada qual foi
para a sua casa.
No dia seguinte, passando pela casa de Pierre,
resolvi visitá-lo. Eram cerca de 2 horas. Encontrei-o a ler e a fumar.
— E então. como vais ? — perguntei-lhe.
— Muito bem.
— E a tua mão?
— A minha mão, tu a deves ter visto em minha
campainha, onde a pus ontem de noite, ao entrar. A propósito, imagina tu que um
imbecil qualquer, sem dúvida para me pregar uma partida, veio bater-me à porta
pela meia-noite. Perguntei quem era. Mas, como ninguém me respondeu, tornei a
deitar-me e adormeci.
Nesse momento, bateram. Era o proprietário,
personagem grosseiro e muito impertinente. Entrou sem cumprimentar.
— Senhor — disse ele a meu amigo, — peço-lhe que
mande retirar imediatamente a cousa que o senhor pendurou na corda de sua
campainha. Em caso contrário, eu me verei obrigado a despejá-lo.
— O senhor — retrucou Pierre com a máxima gravidade
— está insultando uma mão que não o merece. Pois saiba que ela pertence a um
homem muito bem educado.
O proprietário rodou nos calcanhares e saiu como
tinha entrado. Pierre o acompanhou, desprendeu a mão e foi atá-la ao cordão da
campainha que se achava no seu quarto.
— Assim é melhor — disse ele. — Esta mão, como o
Irmão, devemos morrer dos trapistas, me inspirará pensamentos sérios, todas as
noites, antes de adormecer.
Ao cabo de uma hora, deixei-o e voltei para casa.
Dormi mal na noite seguinte, estava agitado,
nervoso; várias vezes despertei em sobressalto e, em dado momento, cheguei a
imaginar que se introduzira um homem na minha casa. Levantei-me para olhar nos
meus armários e por baixo da cama. Afinal, pelas seis horas da manhã, mal
começava eu a adormecer, quando uma violenta batida à minha porta me faz saltar
do leito. Era o criado de meu amigo, quase em trajes menores, pálido e trêmulo.
— Ah, senhor! — exclamou ele, soluçando. —
Assassinaram o meu pobre patrão!
Vesti-me às pressas e corri à casa de Pierre. A
casa estava cheia de gente. Discutiam, gesticulavam, havia um movimento
incessante e cada qual contava e comentava o acontecimento de todas as
maneiras. Com grande dificuldade consegui chegar até o quarto, cuja porta
estava guardada, mas dei o meu nome e deixaram-me entrar. Quatro agentes de
polícia se achavam de pé, no meio da peça, com uma caderneta na mão.
Examinavam, falavam baixo de vez em quando e tomavam notas. Dois médicos
conversavam junto ao leito, sobre o qual jazia Pierre sem sentidos. Não estava
morto, mas tinha um aspecto horrendo. Seus olhos desmesuradamente abertos, suas
pupilas dilatadas, pareciam olhar fixamente, com indizível pavor, uma cousa
horrível e desconhecida. Seus dedos estavam crispados, e o corpo, a partir do
queixo, se achava coberto com um lençol, que eu ergui. O pescoço tinha a marca
de cinco dedos, que se haviam enterrado profundamente na carne e algumas gotas
de sangue lhe maculavam a camisa. Nesse momento uma cousa me chamou a atenção:
olhei por acaso para o cordão da campainha do quarto e notei que a mão do
defunto não se achava mais ali. Os médicos tinham sem dúvida mandado retirá-la
para não impressionar as pessoas que entrassem no quarto do ferido, pois aquela
mão era de fato assustadora. Não me informei do que fora feito dela.
Recorto agora, de um jornal do dia seguinte, a
notícia do crime, com todos os pormenores que a polícia pudera conseguir.
Ei-la:
“Foi cometido ontem um horrível atentado na pessoa do
jovem sr. Pierre B..., estudante de direito e pertencente a uma das melhores
famílias da Normandia. O desventurado jovem recolhera-se a seus aposentos às
dez da noite, dizendo a seu criado Bonvin que estava cansado e ia deitar-se
imediatamente. Pela meia-noite, esse homem foi despertado de súbito pela sineta
do quarto de seu patrão, que agitavam com fúria. Ficou com medo, acendeu uma
luz e esperou. A campainha parou durante um minuto. Depois recomeçou a bater
com tamanha força que o criado, desvairado de terror, precipitou-se fora do
quarto e foi chamar o porteiro; este último correu a avisar a polícia e, ao fim
de um quarto de hora, era arrombada a porta do quarto.
“Um horrível espetáculo se lhes deparou. Os móveis
estavam virados. Tudo indicava que houvera uma terrível luta entre a vítima e o
malfeitor. No meio do quarto, caído de costas, com os membros rígidos, a face
lívida e os olhos terrivelmente dilatados o jovem Pierre B... jazia sem um
movimento; apresentava no pescoço as marcas profundas de cinco dedos. O
relatório do dr. Bourdeau, chamado imediatamente, diz que o agressor devia ser
dotado de uma força prodigiosa e ter uma mão extraordinariamente magra e
nervosa, pois os dedos, que deixaram no pescoço como que cinco orifícios de
bala, quase se haviam reunido através das carnes. Nada faz suspeitar o móvel do
crime, nem qual possa ter sido o autor”.
Lia-se no dia seguinte no mesmo jornal:
“Pierre B..., a vítima do horrível atentado que
ontem relatamos, recuperou os sentidos, após duas horas de assídua assistência
do dr. Bourdeau. Sua vida não está em perigo, mas teme-se pela sua razão. Não
há nenhum vestígio do criminoso”.
Com efeito, o meu pobre amigo estava louco. Durante
sete meses, fui visitá-lo todos os dias no hospício, mas ele não recuperou um
vislumbre de razão. No seu delírio, escapavam-lhe palavras estranhas e, como
todos os loucos tinha uma idéia fixa. Julgava-se sempre perseguido por um
espectro. Um dia foram procurar-me às pressas, dizendo que ele estava pior.
Encontrei-o agonizante. Durante duas horas, permaneceu bastante calmo. Depois,
de súbito, erguendo-se no leito apesar de nossos esforços, gritou, agitando os
braços e como que tomado do maior terror:
— Olhem ali ! Olhem ali ! Socorro ! Ele me
estrangula. Socorro! Socorro!
Deu duas voltas pelo quarto, aos gritos. Depois
caiu morto, com a face contra o chão.
Como ele não tivesse pai nem mãe, fui encarregado
de conduzir seu corpo à aldeia de P..., na Normandia, onde os seus estavam
enterrados. Era dessa mesma aldeia que ele regressara, na noite em que nos
encontrara a beber em casa de Louis R... e em que nos apresentara a sua mão de
defunto. Seu corpo foi encerrado num ataúde de chumbo. E, quatro dias depois,
eu passeava tristemente com o velho cura que lhe havia dado as primeiras
lições, no pequeno cemitério onde abriam a sua cova. Fazia um tempo magnífico.
O céu, todo azul, transbordava de luz, os pássaros cantavam no bosque da
encosta onde, tantas vezes, quando meninos, íamos ambos apanhar amoras.
Parecia-me vê-lo ainda esgueirar-se ao longo do muro e enfiar-se pela abertura
que eu conhecia tanto, além, no fim do terreno onde se enterram os pobres.
Depois, voltávamos para casa, com as faces e os lábios negros do suco das
amoras. E olhei por cima do muro. As amoreiras estavam carregadas.
Maquinalmente apanhei uma amora e levei-a à boca. O cura abrira o seu breviário
e resmungava baixo os seus oremus, e eu ouvia, no fim do caminho, a pá dos
coveiros que abriam a cova. De repente, eles nos chamaram. O cura fechou o
livro e fomos ver o que queriam. Tinham encontrado um esquife. Com um golpe de
picareta, fizeram saltar a tampa e nós avistamos um esqueleto desmesuradamente
longo, deitado de costas, e que, com as suas órbitas vazias, parecia ainda
olhar-nos e desafiar-nos. Senti um mal-estar e, não sei por que, quase cheguei
a ter medo.
— Olhem! — exclamou um dos homens. — O sujeito tem
um punho cortado. Aqui está a sua mão.
E ele apanhou, ao lado do corpo, uma grande mão
dissecada, que nos mostrou.
— Repara — disse o outro a rir — parece que ele te
olha e já vai saltar-te ao pescoço, para que lha devolvas a sua mão.
— Vamos, meus amigos — disse o cura. — Deixem os
mortos em paz e fechem esse caixão. Abriremos em outra parte a cova do pobre
Pierre.
No dia seguinte, estava tudo acabado, e eu voltava
a Paris, após haver deixado cinqüenta francos ao velho cura, para dizer missa
pelo repouso da alma daquele cuja sepultura havíamos violado.
— Fim —
Fonte: Guy de Maupassant. Contos. Tradução de Mário
Quintana. Porto Alegre: Ed. Globo, 1943.